Em 25 de novembro comemora-se o Dia Internacional da
Não-Violência contra as Mulheres.
Muitos países envolvem-se nesta causa, buscando vencer
o medo e quebrar o ciclo da violência. Entretanto, em tempos de covid-19, não
apenas uma epidemia viral tem assolado muitos lares, mas também um aumento dos
casos de violência doméstica.
Viver com medo. Infelizmente
essa é a realidade de 37% das brasileiras.
Praticamente quatro em cada
10 mulheres sofrem violência de alguma forma no Brasil. A cada nove horas, uma
mulher é vítima de feminicídio em nosso país.
Você está lendo este artigo e
neste exato momento uma mulher pode estar sendo humilhada, espancada por seu
parceiro ou por alguém muito próximo, poderá estar sendo estuprada e até mesmo
morta por alguém a quem ela escolheu amar e partilhar sua vida.
Falar em violência contra as
mulheres não é algo novo, para nossa tristeza e vergonha. Em pleno século XXI,
quando festejamos tantas conquistas humanas do conhecimento e técnica, ainda
precisamos discutir, ensinar e pior, enfrentar casos de barbáries sendo
cometidas pelo ser humano. Viver com medo é algo, infelizmente, corriqueiro
para uma parcela da população feminina brasileira e mundial. O medo, a falta de
paz, de tranquilidade, de união, de aconchego, de um lar, de uma família. Medo
do outro, de suas reações explosivas e inconsequentes, abusos psicológicos,
ofensas e ciúmes inconcebíveis.
Desespero e vergonha
substituem a paixão, o amor, o respeito e a harmonia familiar. Quebram sonhos,
deixam marcas no corpo e na alma, cicatrizes visíveis e invisíveis, tanto em
quem sofre a violência quanto dos filhos e de toda a família, que por vezes
chora junto, indignada e revoltada com os atos insanos que inúmeras vezes
culminam num hospital, ou pior, num enterro.
A violência doméstica, cujo
ápice é o feminicídio, tem aumentado em nosso país, principalmente nos últimos
meses por conta da pandemia. Dados do Senado Federal e do Observatório da
Mulher contra a Violência, mostram que no Brasil a violência doméstica aumentou
nos últimos anos. As denúncias de agressões de ex-companheiros subiram de 13%
em 2011 para 37% em 2019. Já os dados do Anuário Brasileiro de Segurança
Pública3 de 2020 indicam um aumento do feminicídio no primeiro semestre de
2020 em relação a 2019. Situações que já eram insustentáveis para muitas
brasileiras, tornaram-se insuportáveis com o isolamento social, que impôs a
elas e seus familiares um maior período de convívio com o agressor. Muitos
casos são subnotificados, pois as vítimas não dão queixas devido a uma série de
fatores que vai desde a dificuldade de fazer uma ligação ou até mesmo ir a
alguma delegacia para dar queixa.
Situações como um homem
colocando fogo na casa com a mulher e os filhos dentro são assustadoras, mas
acabam por se tornar corriqueiras,
casuais nos jornais televisivos, nos tabloides diários, nas redes sociais. Estranhamos
quando não há mortes e tragédias. A morte e a violência vendem. Até nos
admiramos, ficamos impactados momentaneamente, mas “vida que segue”, “não é
problema meu”, e logo nos esquecemos. Afinal, o que estamos nos tornando?
Muitas destas mulheres não reagem, ou se reagem, vivem debaixo do medo da
represália contra si mesmas ou seus filhos. Na maior parte das vezes elas tem
que sair da própria casa, e são punidas duplamente. E seus filhos? Eles têm
direito a convivência com o pai, mesmo quando o agressor está sob medida de
afastamento. Então a questão não é tão simples assim. Não é somente a denúncia,
mas todo o processo envolvido que precisa ser revisto.
Dificilmente você encontrará
uma mulher que não passou ou que saiba de alguma conhecida que não tenha
enfrentado alguma espécie de violência, seja ela psicológica, moral,
patrimonial, até mesmo física ou sexual. Acompanhei através de Aconselhamento
Pastoral inúmeros casos de violência doméstica. Todos inconcebíveis e
intragáveis. Pessoas que aparentemente eram bons cidadãos, extremamente
sociáveis e amigáveis transformavam-se na convivência íntima em algozes
agressores. Mulheres com os olhos arroxeados, faces inchadas e com dor.
Lembro-me de uma mulher que levou um coice nas costas, e quebrou as costelas,
ainda tendo que trabalhar com dor para sustentar seus filhos, pois não podia
abandoná-los. Outra vítima de um murro na cabeça foi parar no hospital, com
traumatismo craniano.
A violência mais grave que
acompanhei foi de uma vítima que foi estuprada pelo pai e pelo tio por mais de
dez anos, desde a sua pré-adolescência.
Violência velada, fechada nos quartos, nas casas, no
escuro.
O Brasil sofre uma epidemia de violência doméstica e
ninguém se dá conta da gravidade da situação. Tornou-se normal. Uma sociedade
ainda predominantemente patriarcal, que protege o agressor e penaliza a vítima,
até mesmo nos tribunais. Até hoje tem-se dificuldade em efetivar a Lei Maria da
Penha em muitos casos. Justifica-se o injustificável. “Deixa para lá, coitado, está estressado,
desempregado. Ele tem a personalidade forte”.
Mais do que refletir sobre o
problema é preciso agir e mudar paradigmas. Denunciar casos de abuso é
importante, mas também é preciso buscar formas de efetivação plena da Lei. Não
basta tocar na ferida e vê-la sangrar. É preciso limpar e passar o remédio para
que sare. É preciso refletir, falar sobre a violência contra a mulher,
esclarecer o assunto, conscientizar a sociedade desde a mais tenra infância que
isso não é normal, não é aceitável, não é certo. Mudar de atitudes e
hábitos culturais estabelecidos por décadas, e isso implica numa mudança de
mentalidade na busca da valorização do ser-humano, na concretização da sua
dignidade, de igualdade, independente de qual seja o gênero sexual.
A pandemia da covid-19 só
agravou uma situação que já era insustentável, e que precisa de medidas
emergenciais, não somente do poder público, com políticas públicas de combate a
violência de gênero, apoio às redes de proteção da mulher, e um maior
envolvimento da sociedade civil em apoio a diretrizes e medidas em prol da
proteção da mulher. A ausência de denúncia pode significar uma futura morte,
mas a omissão também mata.
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